segunda-feira, 30 de maio de 2011

Filosofia, mitologia e cinema: David Hume, Hesíodo e o ladrão de raios




Uma edição de alguns trechos do filme O Ladrão de Raios, em torno de 3 minutos, 
pouco em relação ao longa metragem, porém ilustrativo no que compõe
 o interesse em uma redação de um breve artigo articulando noções do filósofo David Hume 
em relação à imaginação, e a obra de Hesíodo: Teogonia: A origem dos deuses. Confira:



Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,
(...) e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade”
Hesíodo


O que a metafísica de David 
Hume tem a ver com esta história toda?

“todo poder criador do espírito não ultrapassa
 a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir
os materiais que nos foram fornecidos
 pelos sentidos e pela experiência.” 
David Hume


À primeira vista, lançar em um mesmo plano referências tão distantes no  tempo, pode nos parecer estranho, porém, verificaremos através de um exame mais detalhado, o quanto a filosofia moderna, mais especificamente os trabalhos de David Hume, podem nos oferecer uma base filosófica precisa para interpretar o imaginário expresso nos personagens da mitologia grega, que por sua vez aparecem em sua versão pop no filme “Percy Jackson e o Ladrão de Raios” (EUA, 2010), que se trata de uma adaptação para o cinema do livro inicial da série “Percy Jackson e os Olimpianos”, do escritor americano Rick Riordan, este foi o "insight" inicial para o relampejo desse breve e curioso artigo. Deste modo, começaremos por traçar melhor a posição da metafísica de David Hume nesta história toda. Para o filósofo, a partir de passagens encontradas em seu célebre livro “Investigações sobre o entendimento humano”, mais precisamente nas seções II e II, intituladas “Da origem das ideias” e “Da associação da ideias”, constatamos uma teoria das ideias que se funda primordialmente com base na experiência.

Experiência, na linguagem de David Hume, significa o conjunto de dados informações que obtemos através dos sentidos, isto é, significa tudo aquilo que nos afeta de modo imediato, seja no campo da percepção de objetos externos, seja no campo da erupção dos afetos, sentimentos internos, pelos quais somos tomados de acordo com as circunstâncias. Sobretudo, na linguagem de David Hume, o conceito que corresponde ao termo experiência, ganha o nome de “impressões”, que são as nossas percepções mais vivas.

O lugar das “impressões” contudo, se encontra em contraste com a outra categoria de percepções mais fracas, que se denominam “pensamentos ou ideias”, que por sua vez se remetem à reflexão e à lembrança, em que as percepções originais apreendidas pelos sentidos são mais vagas em detalhes, pois na reflexão e na lembrança de uma sensação ocorrida a determinação e definição escapa à totalidade do acontecimento original.
Contudo, as impressões acontecem justo no momento quando observamos, sentimos, ouvimos, isto é, quando os detalhes dos acontecimentos presentes estão mais vivos, mais recheados de detalhes. Já na reflexão e na lembrança as qualidades dos objetos e o fervor dos sentimentos está amansado, apaziguado, pois a reflexão e a lembrança não retomam a impressão original.

Deste modo, para o filósofo existirá então uma relação de interdependência entre ideias e impressões. Em sua concepção, em nossas percepções primordiais abrigam-se a gênese e origem de todas as nossas ideias. Isto é, entre impressões e ideias uma relação de causa e efeito as aproxima de modo umbilical. Assim, uma idéia tem como sua causa, digamos assim, uma dada impressão, ou em outros termos, uma determinada ideia tem como sua causa um certo conjunto de impressões fornecidos pela experiência. E de modo inverso, uma dada impressão produz como seu efeito uma determinada ideia.

Assim também funcionará o mecanismo que rege nossa imaginação. Conceito que mais nos interessa na presente investigação. Se estamos acostumados a ouvir que a imaginação é livre, para David Hume, ela está precisamente contornada em uma certa demarcação dos limites de nossa experiência, ou seja, nos limites das impressões às quais tivemos acesso. Deste modo, poderíamos afirmar que nossas impressões seriam como as portas de nossas ideias. Pois é justo através das impressões dadas pela experiência que nossas ideias tomam forma.
No caso da imaginação, David Hume encontrará um conceito preciso para explicá-la. Para delimitar melhor como a nossa imaginação se forma, nasce na filosofia de David Hume o conceito fundado no princípio da associação de ideias. Com este conceito, abre-se então a possibilidade de localizarmos melhor a origem daquilo que nos sobrevém à mente quando o assunto é imaginação.

Ao invés de nos assustarmos ou nos espantarmos com figuras e formas estranhas à natureza e à realidade, como no caso de pesadelos, sonhos, filmes de terror ou ficção científica, desenhos animados, revistas em quadrinhos, etc.  Para o filósofo David Hume, todos os dados da experiência, isto é, nossas impressões, quando retomados em nossa memória ou imaginação, são ora aumentados, diminuídos, combinados e sobretudo associados, seja de modo eventual, seja de modo imposto pela vontade e pela criatividade. Deste modo, o princípio da associação de ideias é responsável por ligar, na imaginação, dados, figuras, qualidades, características e informações de objetos e formas diferentes, que no plano da natureza e da realidade seriam impossíveis.


Teogonia, a origem dos deuses de Hesíodo
e as interpretações metafísicas 
de Hume acerca da imaginação

Ora, modernamente é que se tematizou a partir de outra abordagem, perspectiva, uma interpretação empirista da formação das ideias e nestas a imaginação como nos propõe David Hume. 

Isto no levou a pensar que poderíamos por mediação da associação da noção de imaginação com a noção de mitologia, isto é, categorias diferentes em relação à natureza e à realidade, tomá-las, elas, a imaginação na perspectiva da metafísica de David Hume, e os traços presentes na Teogonia de Hesíodo, como algo que pudéssemos explorar traços em comum entre estas duas referências.

Nossa primeira constatação é a de que a mitologia carrega em seu modo de associação das ideias traços de nossas impressões reais. E neste sentido, ao criar figuras, que habitam o desconhecido plano da religiosidade de um povo, que é a sua formação no tecer do tempo, das formas de linguagem inscritas sob a égide de um lampejo religioso, o conjunto de sua mitologia e de seu imaginário. Mitologia esta que em dado momento histórico orientam as ações e decisões daqueles a quem a crença está inscrita na alma, que em filosofia, está sempre associada ao plano das ideias, desde a antiguidade em Platão com o mundo das ideias inscritas no mundo das almas, aonde reside o conceito de verdade, até a modernidade, com filósofos como René Descartes, também associando o plano das ideias como algo distinto do corpo, que porém se relacionam entre si, mas são precisamente de natureza distintas.

É sabido, que a Teogonia do poeta Hesíodo ocupa o lugar mais longínquo, e por isso não menos importante, do que nós modernos conhecemos dos antigos gregos, que se referia à sua mitologia, as figuras do imaginário de linguagem e imagem tão diversificado como a mitologia grega o fez. E que para a modernidade, nos chega através de seus ecos e releituras dos mitos gregos, que para a grande massa é oferecido principalmente por meio das séries de desenhos televisivos e também  por meio do cinema, em diversos filmes recentes da última década, entre eles o filme em que o nosso ladrão de raios aparece.

Retomando algumas lembranças dos mitos gregos, poderíamos afirmar que, as figuras reunindo características animais e humanas, como o minotauro, ou aumentadas, segundo a perspectiva de Hume, ou as musas como profetas da criação, poderiam ser indicações de que um contorno filosófico tentasse se aproximar de uma mais precisa abordagem das figuras da Teogonia, dissecando associações de ideias abrigadas nas figuras do imaginário da mitologia grega, descrita na obra do poeta Hesíodo.  Compreendemos isto como um valioso caminho de averiguação das teses de David Hume a respeito da imaginação.

Nossa intenção, sobretudo, é se colocar no limite temporal que nos interpõe e nos afasta, desde uma mediação entre nós e os mitos da antiguidade que antecederam o surgimento da filosofia. Não pretendemos aqui realizar um trabalho de interpretação filosófica da obra Teogonia como um todo, desde a perspectiva da poética do mito, tema o qual se ocupam alguns filósofos atualmente. Mas de outra maneira e em outra direção, tratar o tema da imaginação associado ao tema da mitologia, desde uma perspectiva empirista e não desde uma metafísica do mito. Isto é, a partir da tendência e inclinação em se familiarizar mais com algumas noções de metafísica, desde a observação dos mitos. 

Nesta mesma direção, afirmamos que a metafísica empirista de Hume nos promove uma referência em relação ao assunto, porém, sabemos, que se trata de um caminho, e tão somente um caminho, dentre outros possíveis de leitura, em que uma investigação mais rigorosa das figuras da Teogonia desde uma interpretação da poética ali instaurada, não é a intenção deste trabalho. A parcela do desconhecido, indizível, irracional e do psiquismo, simbologia e religiosidade, se interpõe entre nós e a Teogonia de Hesíodo, nos é inacessível, de certeza que é um livro de muito difícil leitura, e de uma riqueza poética incomensurável.

A título de referência mais precisa na Teogonia de Hesíodo, uma passagem nos chama muito a atenção. Se trata do "Proêmio das Musas", que promovem com seu canto o anúncio das divindades e dos elementos da natureza sob a égide destes deuses e deusas. Figuras como Zeus, Hera, Argos, Apolo, Atena, Ártemis, Posídon, Têmis, Afrodite, Dione, Aurora, grande Sol, Lua brilhante, Jápeto, Terra, Oceano e Noite, ecoam nos cantos das musas que lançam "belíssima voz". Figuras estas que são associadas a impressões de objetos materiais: como calçada, sandálias, porta, flechas, coroa, traços do corpo como olhos, qualidades como o "curvo pensar" de Jápeto, e ideias, como a ideia de beleza, de agilidade, de soberania, áurea, sagrado, imortalidade, luminosidade, entre outros. Vejamos como se articula a passagem em que encontramos estas figuras citadas acima, a saber, "O Proêmio das Musas": 

“vão em renques
noturnos lançando belíssima voz,
hineando Zeus porta-égide, a soberana Hera
de Argos calçada de áureas sandálias,
Atena de olhos glaucos virgem de Zeus porta-égide,
o luminoso Apolo, Ártemis verte-flechas,
Posídon que sustém e treme a terra,
Têmis veneranda, Afrodite de olhos ágeis,
Hebe de áurea coroa, a bela Dione,
Aurora, o grande Sol, a Lua brilhante,
Leto, Jápeto, de curvo pensar,
Terra, o grande Oceano, a Noite negra
e o sagrado ser dos outros imortais sempre vivos.”

O que pretendemos indicar lendo esta passagem, a partir da teoria da imaginação de David Hume, trata-se em compreender que encontramos na filosofia referências interessantes em nos aproximar de uma possibilidade de leitura e compreensão das figuras mitológicas da Teogonia de Hesíodo.  Sendo a obra de Hesíodo a principal referência para mais uma versão sobre  mitologia grega sendo dessa vez uma releitura cinematográfica a partir de um curioso filme que traz à tona uma leitura da literatura juvenil de um americano chamado Rick Riordan. Comentário que gostaríamos de ilustrar a partir da referência ao filme em questão.

E em outra direção, nos interessa observar, ao nosso modo, como o cinema através de uma grande produção, que envolve nada mais que o diretor Chris Columbus (que dirigiu os dois primeiros Harry Porter), ainda nos dias de hoje, sob o domínio da técnica e da ciência no mundo moderno, consegue atrair temas da antiguidade ocidental como tais como os mitos gregos, como tema para um empreendimento bem sucedido da indústria cinematográfica como este. Chris Columbus retoma a mitologia grega, a subvertendo e pegando carona em suas figuras, e por tabela nos remonta a trechos da obra que mais chegou aos leitores de nossas gerações atuais sobre a mitologia grega, que é  célebre “Teogonia: a origem dos deuses” do poeta Hesíodo. No princípio era o caos.


 A Zeus deram o trovão e forjaram o raio: e nos aparece no cinema nosso caro amigo Ladrão de raios: o principal acusado é Percy Jackson


O raio governa todas as coisas que são
Herácrito

Ora, logo o relâmpago, o trovão de Zeus? Estaria a hierarquia do arquétipo de rei dos reis do Universo, o grande Zeus em perigo? Tendo seu principal poder ameaçado? Seu atributo da natureza que ele Zeus coordena? O que a trama do filme anuncia logo ao início é a instabilidade do Olimpo. Poseidon, ligado ao elemento da phisys que é o mar, e Zeus, ao governo do “Relâmpago”, em uma dilema: localizar o raio que foi roubado: o raio de Zeus.
O percurso desta trama e aventura, se passa na busca por este raio principal, já dizia o filósofo Heáclito: “O raio governa todas as coisas que são”. O interessante que a grande maioria dos personagens impõe sua forma peculiar, em um cenário místico próprio da obra de Hesíodo, dando espetacular relevo aos mitos gregos, como por exemplo, as cenas em que aparecem as  figuras ou imagens da Hidra, e do olhar  mortal e petrificador da sensual Medusa.






Levando adiante as Teses de Hume: 
a Teogonia de Hesíodo, 
e sua releitura no filme do diretor Chris Columbus

Ora, retomemos o percurso: em uma primeira oportunidade nos deparamos com a filosofia de David Hume, e uma tentativa de demonstrar através de análise de exemplos, que o filme Percy Jackson e o Ladrão de raios, baseado no livro de Rick Riordan, e a obra clássica Teogonia a origem dos deuses de Hesíodo, principal referência para as figuras do imaginário da mitologia grega, apresentam, contudo, um fio condutor entre eles. Isto nos daria abertura para um diálogo entre metafísica, a partir do tema da imaginação, e as figuras  da imaginação apresentadas nos mitos e reelaboradas no filme o Ladrão de Raios, de 2010.

Nossa inclinação é indicar que as afirmações de David Hume de que as figuras da imaginação associam de uma forma ou de outra elementos, características, da experiência sensível, é um de nossos principais pontos de partida para a abordagem aqui desenvolvida. Podendo, a atividade da imaginação, aumentar, associar, diminuir, caricaturar, como própria dinâmica do pensamento, os dados fornecidos pelos sentidos. Tomando sobretudo como referências os elementos ou fenômenos da natureza tornadas divindades na obra de Hesíodo, e que o filme em questão dá relevo e importância, por exemplo nas figuras de Poseidon, referente aos mares, e Zeus, referente ao raios.

É nesta direção que vale a pena articular algumas noções acerca do tema da imaginação na filosofia de David Hume, para a qual a principal constatação em relação ao conhecimento é exatamente a pergunta:  “What impression that Idea is derived?” Isto é, de que impressão esta idea é derivada? Assim encontramos no Tratado da Natureza Human de Hume. É este o problema filosófico primordial que nos conduziu por todo este percusso de reflexão.


















Fepaschoal & Comando Guatemala: Barbarizô geral!!!




No percurso de 2010, neguin acessava o my space do FP_CMDO_Guatemala e via lá: “Gravando-ES/Brazil”. Isso até bem pouco tempo atrás. Daqui a pouco mermão: chega assim, na mulera, o link via facebook, do registro Fepaschoal e Comando Guatemala. Pra fulano que se amarra no som, bolação geral! Pra começar a assimilar algo? Pelo menos umas três camadas de audição: arranjos, composições, letras, gravação, volume, na medida.O batidão é bruto, eclodindo toda veia criativa do núcleo/movimento cultural Expurgação.

Mr. Boi batera (que também assina a arte visual do álbum), Arthur Navarro no baixo e efeitos, Alexandre Barcelos ("cabriocoreman" ) guitarras, e Fepaschoal em suas composições e toques de arranjos, além de mandar seus riffs nas guitarras, sopros no didjeridu, acordes no cavaco em “Corda embolada” pra lá de Cartola, vale a pena conferir. 

Além, é claro, de participações da fina estampa de jovens músicos e cantoras que assumem o coral e o homem do saxofone que quando chega em “Guapa chica”, “escucha a Guapa Chica mia... para bailar....”, explode a ambientação sonora com o sax que chega tomando a guia da faixa, se avolumando sobre os arranjos da banda. Em “Império do Empírico” então, a batida tribal dinamitando  colada com a tensão do saxofone somando de bônus o refrão: “Que ele está acima, acima/ Ah! Se isso matasse! Ah se isso matasse!/ Que ele está acima, acima/ Ah! Se isso matasse! Ah se isso matasse!”, com o coral realmente em cima! Segundo o próprio Fepas, a canção "Império do Empírico" é uma espécie de  "SoulPowerAxéprafrentehc, como me disse um amigo."

Na vero, simplesmente Shutê Geral o disco!! A experimentação sonora levada às graças do público através de parceria com a Jurássica Laja Records, “figura rítmica e política na era atômica”: Mozine, Moz, isso mesmo, o cara do conceito “faixa a faixa”, dando a pilha pra Fepilha pra mandar um poca pala  sobre cada faixa do álbum em virtude do lançamento no portal Trama, com foto de Chico W. Laja Records e Comando Kalakuta na conexão vibesambanoisecorenóia. Parceragem que se consuma na faixa “Planador”: vai lá Moz em seus ruídos vocais fazer um barulho com o coletivo Comando Guatemala segurando a batida seguida de um arranjo de cavaquinho, e que acabam de nos oferecer, como um todo, uma grande zonzera lex brute!

Em uma tiragem de 1000 cópias, FePaschoal e Comando Guatemala barbarizô geral! Quanto às referências que poderíamos aqui, somente a título de associação de ideias por meio do entendimento, sobretudo para instigar o ouvinte da boa música, o CD em questão arrisca alto na estética da música “sem firula”, com um álbum que chega na medida da articulação bruta: qualidade de composição e gravação, letras, swingada, batidae é com grande ânimo que nos chega este lançamento.

Girando entre a autoria e referências misturadas na mente e nas mãos sobre instrumentos e equipamentos, durante anos ouvindo e tocando, a galera do Comando rebate e cola no pé do ouvido arranjos muito precisos: Calipso, Jazz, Afrobeat, Rock, Mambo, Samba, Funk, Drum’s and xote, soul, groove, Jorge Ben, Alceu Valença (da fase das músicas “Vou danado pra Catende”, “Planetário” ou "Espelho Cristalino" que até já foi tocada ao vivo), além de muita referência e apreço pelo mestre Féla Kuti, algo inconsciente de Nereu Samba Power, Trio Mocotó, Mundo Livre S/A e Nação Zumbi, Comando Kalakuta & sobretudo: Coletivo Expurgação.

A título de darmos nomes aos “bois”, poderíamos aqui sintetizar rapidamente, como destaques, as faixas “Guapa chica”, que abre o disco, “Império do empírico”, “Adão” e “Saci Solucion”, que encerra a peça. O que nos recua o ouvido neste registro, em algumas camadas de audição, nos leva para uma estética de linguagem que migra entre o concretismo e a fuleragem, o empirismo e o flerte da manguaça, colagens de palavras e poema Brasil, Manifesto da tensão e da pindaíba (“Sem dinheiro hoje e nem amanhã!” ouvimos em "Saci Solution") além de pitadas da estética do "fica atento que a corrida é ligeira."

E no som, as composições giram entre o samba & o noise, aquele frevo trava perna, ambientações sonoras com didjeridu e saxofone, juntamente com marcações de guitarra viscerais e sussegadas, sem firula, entre cordas de cavaquinho nem sempre tão “emboladas”, porém na medida, ecoando sopros graves com o didjeridu de pvc, bem como, naquela atmosfera sonora na base da marcada do triângulo acelerado e no equilíbrio circular do som, como é o caso da faixa “Carapaça”, além do batmacumba ligeiro na cadência do ritmo da capoeira de Angola na batera encontrado na faixa “Adão”. Pesado. Ecoando batidas de uma capoeira de Angola com refrão poema matemático redondo, iniciando a letra da canção "Adão" com expressões contíguas, palavras juntas sem conectivos: “Bate cabeça Adão/ cabeça bate mané/ bota cabeça no chão/ e troca ela com os pé/ Bate cabeça Adão/ cabeça bate mané/ bota cabeça no chão/ e troca ela com os pé”, com o coral de musas garantindo, Aline Hrasko na participação, sem imagem só no som, e segue o método da palavra contígua: “Sorri sorrindo Firula”, muito boa essa faixa! Tudo isso equilibrando a tensão e leveza do clima das ondas sonoras. O álbum certamente surpreende.

Finalizando bombê shutê geral, firulô num firulô é isso e ponto. Vale a pena conferir o coral, as participações e experimentações sonoras registradas neste visceral disco, que nos aparece como um movimento musical de grande importância criativa, estímulo e manifesto, misto de Olodum com Trio Mocotó com arranjos pra lá de Morphine no saxofone, e aquele batidão acompanhado por aquela guitarra wah wah percursiva, com suas oscilações de volume, efeitos e mixagens na medida, música dançante, registro autêntico: folia no pop space! Soulpower na escriba poca pala que o filho é do Comando Kalakuta. Se liga nesse som.




domingo, 15 de maio de 2011

O homem que comia diamantes: a fantasmagoria do arcaico sobre o moderno



“... uma certa defasagem cronológica na
importação de conceitos
 e doutrinas pela elite intelectual brasileira
poderia explicar por que certas idéias,
mesmo as mais poderosas ou prometéicas,
dão a impressão de se encontrar um pouco fora
 de seu lugar ou deslocadas em
seu tempo de realização efetiva.”
                                        Paulo Roberto de Almeida


A perspectiva aqui trata-se de nos lançamos ao risco do pensar pelos trópicos distante daquele viver “parasitáriamente à beira do Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa” [1] em expressão de Euclides da Cunha. Por nossas terras, interessa-nos aqui demarcar que o que atende pela alcunha de moderno ou pós-moderno, ainda não se dissipou de todo da fantasmagoria do arcaico. 
Para nos situarmos melhor acerca do problema da extensão por nossas terras do signo do moderno ou pós-moderno, iremos não sem desvios ao encontro da alegoria indicada ao nome deste breve artigo. A encontramos na literatura, que se fez mais pensamento em nossas terras que filosofia, tratada em certo tom de ironia, por exemplo, por nomes como Rubem Fonseca.
Não sem propósito a filosofia, em sua origem européia, no conto A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro é tratada em um tom de ironia. Na medida em que filosofia e pensamento no Brasil, em nosso raio histórico têm sido tomados por aquele fascínio “à frase rara, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara” [2] , como nos afirma Sérgio Buarque em Raízes do Brasil. É o pensamento como adorno, como a pena de pavão, deslocada de seu habitual lugar. 
Em trabalho de nome Estética e Extética – Crítica Literária e Pensamento no Brasil, Bajonas Brito nos indica que uma vez  “Feita desde o início supérflua, à filosofia restou apenas associar-se as lides do adorno.”[3] É neste sentido que se inscreve o tom de ironia que Rubem Fonseca atribui à filosofia no Brasil:

“Augusto está sentado num banco, ao lado de um homem que usa um relógio digital japonês num dos pulsos e uma pulseira terapêutica de metal no outro. Aos pés do homem está deitado um cão grande, a quem o homem dirige as suas palavras, com gestos comedidos, parecendo um professor de filosofia a dialogar com seus alunos numa sala de aula...” [4]

Nesta direção, literatura e pensamento no Brasil podem nos abrir valiosos caminhos para uma interpretação acerca de nossa experiência histórica. A alegoria a que estávamos nos referindo anteriormente, a encontramos em outra obra de Rubem Fonseca de nome Vastas emoções e pensamentos imperfeitos, um homem que para viver tem a necessidade orgânica de comer diamantes, isso mesmo, comer diamantes, estamos nos referindo ao emblemático Alcobaça, líder do grupo de contrabandistas de pedras preciosas, emblema que nos afeta por mediação de espanto e curiosidade na medida em que se trata de uma anedota, um delírio, ou antes mesmo um devaneio, pensarmos em um homem que come diamantes para manter-se vivo!!!!.  
O aparecimento do homem que comia diamantes é também o aparecimento do pensamento como delírio, isto é, do pensar que ganha seus contornos e precisão por mediação do devaneio, e que ganha lugar e forma no romance de Rubem Fonseca. Assim lemos na enunciação de Alcobaça acerca de sua irrefreável necessidade de consumir diamantes, quando da oportunidade em que o narrador anônimo é seqüestrado pelos contrabandistas que acompanham Alcobaça à procura das pedras preciosas que estavam no “embrulho de papel pardo” levado por aquela mulher que subitamente aparece ao início do romance como sendo perseguida:

“Alcobaça sentou-se na poltrona, de olhos fechados. Estava mais pálido do que nunca. Ficou uns dois minutos com ar de morto. Depois disse: “Sou dominado por uma estranha patologia, uma ruptura da harmonia interna do meu corpo, de etiologia desconhecida”. Uma pausa. “Minha vida daria um filme.” [5]

Ora, não é esta “estranha patologia” que afeta nossas elites desde a colonização ibérica até o nosso raio histórico no seu trato com a natureza? Este trecho do romance de Rubem Fonseca mesmo tratando do Brasil contemporâneo, remete-se, desde a ótica de Alcobaça, ao modo de exploração da natureza comum ao Brasil arcaico, colonial, natureza de onde se extrai o máximo de riquezas sem nada retribuir, fundado historicamente no uso do fogo sob extensão do monocultivo para exportação... Daí não podermos pensar no emblema de Alcobaça como algo desvinculado de nossa mais arcaica experiência histórica, uma vez que um dos traços do modo de exploração de nossas elites em seu trato com a natureza no raio destes cinco séculos, trata-se justamente da extração das riquezas materiais de forma extremada, predatória e sem limites.
Isto é, o aparecimento do homem que comia diamantes no romance de Rubem Fonseca deve ser tomado como o ponto de acordo e cumplicidade entre o arcaico e o moderno em nosso raio histórico, daí que o emprego do conceito de modernidade comum à experiência européia, ser algo, de certo modo, incongruente e ambíguo quando transportado de modo mecânico para a experiência brasileira. Nesta direção, o arcaico e o moderno convivem desde certa proximidade, a saber, desde certo conluio fundado em uma ausência de tensão entre esferas que a princípio nos parecem opostas. 




Notas:

[1] Os sertões, Euclides da Cunha, Nota preliminar, 23ª. Edição, Rio de Janeiro 1954.
[2] Sérgio Buarque, Raízes do Brasil, p. 83.
[3] Bajonas Brito, Estética e extética: Crítica literária e pensamento no Brasil (não – publicado).
[4] Rubem Fonseca, A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro; Contos Reunidos, p. 605 e 606.
[5] Rubem Fonseca, Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. Círculo do Livro S. A. São Paulo.




MEMORANDO: Orquestra Manguefônica





Um acontecimento memorável, um instante de infinitude, isso mesmo, nada mais nada menos que a mais bem sucedida aliança do baque solto e do baque virado: Nação Zumbi e Mundo Livre S/A juntos no mesmo palco!! Como assim? Tal aliança atendia pela alcunha de Orquestra Manguefônica. Local: Circo Voador, noite de 2 de abril de 2005, sábado. Objetivo dos mangueboys: em homenagem ao eterno Chico Science, tocar o álbum Da Lama ao Caos praticamente na íntegra e fixarem sua marca indelével na memória de um público sedento por ouvir e ver a aliança mais poderosa surgida nos trópicos na história da música. A abertura ficou por conta de seus conterrâneos Mombojó, jovens rapazes que traziam algo como um flerte da bossa com o groove, contando com a participação, ao final da apresentação, de China do Sheik Tosado.

Enfim, passado o percurso da viagem até a cidade de Jorge Ben e Picassos Falsos, para não nos estendermos muito, embora transbordando ansiedade e voracidade através de ouvidos e olhos, estávamos lá, na espreita do que nenhum relato pode tornar conciso, Orquestra Manguefônica meus caros!!

Subitamente um repentista aparece no palco, é o prenúncio dos mangueboys, com a linguagem sendo dosada a golpes de martelo, é anunciada a entrada do groove, do funk, do protesto sujo de lama e vivo, muito vivo, depois de muitos ataques dos urubus e alvo de inúmeros “mísseis desgovernados”. Inicia-se a introdução de Monólogo ao pé do ouvido, Fred 04 de posse de seu cavaquinho assume os vocais, “Modernizar o passado é uma evolução musical, cadê as notas que estavam aqui, não preciso delas, basta deixar tudo soando bem aos ouvidos”, quando braços em punho cerrados se levantam para cantar em coro: “Viva Zapata, viva Sandino, viva Zumbi, Antônio Conselheiro, todos os panteras negras, Lampião sua imagem e semelhança, eu tenho certeza eles também cantaram um dia”.

É dado o sinal para que mangueboys tomem seus postos, duas baterias, percussão, três tambores, a pungente guitarra de Lúcio Maia.... Banditismo por uma questão de classe torna-se um cadenciado funk-groove, com o negão Gilmar Bola 8 nos vocais, para só então Jorge Du Peixe assumir Rios, Pontes & Overdrives. Subitamente, Lúcio Maia, do lado direito do palco para o público, solta um fulminante riff irreconhecível de guitarra, a Orquestra acompanha, o mais atencioso ouvinte estranha a levada, quando de repente Jorge Du Peixe entra com a letra de A cidade, como se não bastasse, o groove continua, com Fred 04 sem aviso prévio tomando um dos microfones a cantar trechos de Guns of Brixton do Clash. A cidade tornara-se groove session, Du Peixe retoma os vocais e vai de A message to you Rudy, “Rudy, a message to you, Rudy”, dos Specials (composição de Lee "Scratch" Perry/Lee Thompson), em seguida, evoca o Ben com Ponta de lança africano (umbabarauma). A esta altura já estava indicado que as versões de estúdio das canções de Da Lama ao Caos tinham passado por incríveis,  maturadas e constantes mutações.

A praieira tornou-se um flutuante e equilibrado ska. Em seguida, Marcos Matias do fundo do palco, imponente com seu tambor em punho, subitamente assume a regência quando o assunto é samba, Samba Makossa, a intensidade vai aumentando na medida em que Pupillo vai acelerando os galopes de sua bateria sob as rédeas do pandeiro de Toca Ogan, até que o groove da Orquestra dá os seus saltos, “Cerebral, é assim que tem que ser, maioral, é assim que é, mão na cabeça e um foguete no pé”, agarra o público um fragmento do samba-groove com as vozes em coro, enquanto chão de Circo Voador é trampolim para a “Ladeira do limiar do gosto pelo infinito, já querendo o depois”, em expressão de Du Peixe. Lúcio, ao final de Makossa, troca de guitarra, o “depois” atende pela alcunha de Da lama ao caos, em sua Tsunami version, é a Cavalaria Manguefônica deixando o seu rastro a golpes de martelo. “Mais uma música nova aê” dizia Du Peixe a cada passagem de uma música para outra.

O arsenal do Mundo Livre não poderia deixar de fazer sua intervenção, começando sua andada com Livre Iniciativa, que deixara sua versão samba-groove de estúdio ao encontro de sua Manguefônica version, em que só no refrão: “Samba esquema noise!!”, é o público que aguardava o estouro do groove, nocauteado pelo conluio entre samba e reggae, com o cavaquinho de Zeroquatro marcando o swing da levada. Em seguida, a Orquestra vai de Manguebit com 04 na regência, que no breque evoca London Calling do Clash, com Dengue no baixo chamando pra si a regência martelada da Manguefônica, para só então encerrar a canção com o retorno à enérgica Manguebit.

Na seqüência, o no início sorrateiro e em seguida fulminante Salustiano song, é responsável por poupar as vozes dos mangueboys, abrindo destaque para a harpa Manguefônica de Lúcio Maia, para só então Du Peixe retornar à regência com Antene-se: “Sou, sou, sou, sou, mangueboy! Recife cidade do mangue, onde a lama é a insurreição, onde estão os homens caranguejos,..., procure antenar boas vibrações”. Com antena manguebólica dissipando boas vibrações através das ondas eletroafrociberdélicas sobre o infinito, abre-se espaço para o canto do outro lado do mundo para a amada Risoflora, é o caranguejo de andada deixando o seu rastro solitário: “E em vez de cair em tuas mãos preferia os teus braços, e em meus braços te levarei como uma flor, pra minha maloca na beira do rio, meu amor!”.

Como uma cavalaria que vem ao longe e vai impondo seu ensurdecedor volume e medida ao passo que vai chegando, aparece o Lixo do Mangue, Pupillo e companhia soltam os braços, enquanto Gilmar Bola 8 vem como um lutador de boxe do fundo do palco largando o seu tambor para assumir com voracidade os vocais: “Vamo se embora que o mundo arrudiô, e se eu ficar aqui parado eu não vô, me diz que som é esse que vem de Pernambuco.”

Mais uma intervenção do Mundo Livre S/A na Orquestra Manguefônica: Pastilhas coloridas, “Como se não houvesse lugar pra nós na Nação Zumbi”, canta Zeroquatro. Em Coco Dub (Afrociberdelia), Black Alien é convidado ao palco, Toca Ogan entra em transe afastando-se dos instrumentos e ocupando o centro das atenções com seus malabarismos corporais, enquanto 04 evoca trechos de Guns of Brixton aos microfones e amplificadores bem ajustados, calibrados.

Embora Maracatu de tiro certeiro tenha ficado de fora dos sons, após passagem de Orquestra Manguefônica diante de olhos e ouvidos famintos, cair em si insistiu em se afastar de ouvidos, olhos ensolarados em noite tranqüila, espírito eletrizado no burburinho que ecoava da multidão, apenas instante de infinito deixando seu rastro por demais crivado em memória, é isso aê!! Longa vida aos caranguejos com cérebro!!!